O clero é uma instituição por
demais supervalorizada. Relatórios sobre o valor e a necessidade do clero têm
sido grandemente exagerados. Um grande número de cristãos acha que o fator mais
importante na hora de se escolher uma igreja é o seu ministro; acham que uma
igreja não pode funcionar eficazmente sem um pastor ou sacerdote; que a primeira
coisa que se deve fazer, ao se iniciar uma igreja, é contratar um pastor para
dirigi-la; que o culto de domingo à noite deve ser avaliado pelo sermão, e que
o modo mais elevado de se servir a Deus é ir para o seminário para ser treinado
para o serviço cristão.
Mas não seria o contrário, que o
clero não é necessário nem benéfico para a igreja? Não é possível que uma das
melhores coisas que poderiam acontecer à igreja seria que todo o clero renunciasse
seus cargos e seguisse carreiras seculares? Não será possível que o melhor tipo
de igreja é a igreja sem clero?
Com certeza, para muitos tal
idéia seria uma loucura. Mas se analisarmos a questão mais detidamente
veremos que esta idéia tem fundamento. A verdade é que, a despeito do prestígio
que goza o sistema clerical na igreja contemporânea, ele tem pouco a ver com o
Novo Testamento, é basicamente contraproducente, e é em si mesmo um empecilho à
vida saudável da igreja bíblica.
PRIMEIRO, entendam, por favor,
que nossa crítica é ao clero enquanto instituição, e não às pessoas que ocupam
o cargo. As pessoas que têm cargos de ministros e pastores são, em sua maioria,
pessoas admiráveis. Amam a Deus e se comprazem em servir ao Senhor e Seu povo.
Geralmente são sinceros, amorosos, inteligentes, altruístas, e longânimes. Que
fique claro que o problema com o clero não está nos clérigos mas na profissão
de que estão investidos. Que fique claro também que, não obstante os sérios
problemas de sua profissão, os clérigos conseguem realizar um bom trabalho na
igreja. Não é o caso que os clérigos não sejam úteis aos membros; tanto são
úteis que se tornaram demasiadamente importantes na vida da igreja. Mas eles
conseguem prestar um bom trabalho, a despeito de sua profissão, e não por causa
dela.
Não há dúvida de que o clero é
uma profissão, e que os clérigos são profissionais. Do mesmo modo que os
advogados protegem e interpretam a lei, e os médicos protegem e administram
remédio, o clérigo protege, interpreta e administra a palavra de Deus. Como
outra profissão qualquer, o clero estabelece padrões de conduta acerca de
como seus membros devem se vestir, falar e agir, no serviço ou fora do serviço.
E, como outras profissões, estabelece padrões de escolaridade, de preparo, de
admissão à profissão, procedimentos para candidatar-se a um emprego, e
aposentadoria. Tanto padres católicos como ministros protestantes têm que
preencher determinadas expectativas de seus párocos, amigos, hierarquias,
autoridades denominacionais e de suas próprias expectativas, com respeito a seu
grau de preparo, tipo de pessoa que devem ser, e o desempenho de determinados
tipos de obrigações.
Tradicionalmente, a profissão
requer que os clérigos sejam do sexo masculino e, em algumas denominações,
casados, e bem casados. Requer também que sejam formados por seminários e
ordenados oficialmente. De um modo não realista, a profissão requer que os
clérigos sejam pessoas extraordinariamente dotadas: devem ser líderes natos,
oradores qualificados, administradores capazes, conselheiros empáticos, sábios
em tomar decisões, hábeis em resolver conflitos, e teólogos astutos. Os padrões
da profissão requerem que sejam moralmente retos e exemplares em todos os
sentidos. Seu trajar deve ser impecável, e devem falar com autoridade e
convicção.
Os clérigos funcionam
essencialmente como administradores eclesiásticos profissionais. São suas
responsabilidades: o preparo de aulas, homilias, e sermões; visitar os doentes,
ministrar funerais, casamentos e sacramentos; supervisionar eventos sociais,
escola dominical, e aulas de catecismo; preparar casais para o casamento,
aconselhar os que têm problemas, preparar relatórios da denominação, ser
assíduos nos encontros denominacionais, dirigir programas missionários e
evangelísticos, reunir e supervisionar o quadro de funcionários, ministros
auxiliares, líderes da mocidade, pessoal administrativo e equipes de
evangelização; organizar carreatas para levantamento de fundos, cuidar das
relações comunitárias, supervisionar a utilização e manutenção da planta
física, incentivar, disciplinar e edificar os párocos, e estabelecer a visão e
metas da igreja.
Há, assim, um conjunto bem
definido de obrigações que todos, até mesmo os não evangélicos, reconhecem como
sendo os deveres de um clérigo. Isto é do conhecimento geral justamente por
se tratar de uma profissão institucional, criada e mantida por denominações,
hierarquias, seminários teológicos, leigos e pelos próprios clérigos.
O PRIMEIRO PROBLEMA inerente ao
clero é que não é uma profissão instituída por Deus. Simplesmente não há
autoridade ou justificação bíblica para a profissão clerical que conhecemos. Na
verdade, o Novo Testamento sugere uma forma bem diferente de igreja e
ministério pastoral.
A história nos mostra que as
sociedades humanas têm criado castas espirituais de curandeiros, sacerdotes,
magos, profetas, gurus, e a igreja cristã não é exceção. Não demorou muito para
que a igreja engendrasse, com base em passagens bíblicas ambíguas (“sobre esta
rocha edificarei a minha igreja”, “não amordaces o boi, quando pisa o trigo”)
uma enorme superestrutura hierárquica institucional. Isso deu origem a um
sistema de duas classes no seio da igreja, o clero e o laicato, dos quais o
clero é considerado o mais espiritual.
Não obstante seu rompimento com a
igreja católica, os protestantes são iguais a ela no que diz respeito ao clero.
Mesmo tendo resgatado da Bíblia a ceia do Senhor e o batismo como centro da
revelação de Deus, a profissão criada pelos protestantes para proteger e
anunciar esta revelação funciona de modo idêntico ao sacerdócio católico.
Enquanto o padre ministra corretamente a hóstia, o pastor interpreta corretamente
a palavra de Deus.
Mas, quando voltamos à Palavra de
Deus e a reconsideramos, vemos que a profissão clerical é produto da cultura e
história humanas, e não reflete a vontade de Deus para a igreja. Simplesmente
não há como construir uma justificativa bíblica em defesa da instituição do
clero.
O SEGUNDO PROBLEMA com a
profissão clerical é que ela esmaga a ‘vida do corpo’. O Novo Testamento nos
mostra que não é a vontade de Deus que a igreja seja uma associação formal a
que uma membresia subalterna pertença através do pagamento de taxas e
freqüência a reuniões; uma associação organizada, orientada e governada por um
líder profissional (e por uma burocracia administrativa no caso das grandes
organizações). No entanto, é precisamente assim que são a maioria das igrejas.
Ao contrário, a intenção de Deus
é que a igreja seja uma comunidade de crentes na qual os membros contribuem com
seus dons, talentos e habilidades de modo que - através da participação e
cooperação ativa de todos - as necessidades da congregação sejam atendidas. Em
outras palavras, em lugar de um ‘ministério de profissionais’, o que deve haver
em nossas igrejas é o ‘ministério do povo’. Deste modo, a igreja poderá
funcionar como um corpo, onde cada membro, com suas características pessoais,
contribuirá para o bem de todo o corpo. Paulo deixa bem claro que os dons de
cada membro são indispensáveis, e que o corpo precisa de que cada membro dê
sua contribuição, caso contrário o corpo estará aleijado. (I Co. 12:20-25).
O problema é que,
independentemente dos ditames de nossas teologias acerca do propósito do clero,
o efeito real da profissão clerical é aleijar o corpo de Cristo. Não que seja
esta a intenção do clérigo, (via de regra, suas intenções são boas) mas porque
as características intrínsecas à profissão inevitavelmente fazem dos ‘leigos’
receptores passivos.
O papel do clero é em sua
essência, a profissionalização e centralização dos dons de todo o corpo em uma
única pessoa - o clérigo. Assim, o clero representa a capitulação do
cristianismo à tendência da sociedade moderna à especialização. Os clérigos
são especialistas espirituais, especialistas eclesiásticos. As demais pessoas
na igreja são meros crentes ‘comuns,’ que têm empregos seculares e atividades
não espirituais nas quais eles podem se especializar, tais como conserto de
canos, ensino, marketing.
Assim, o que deveria ser feito
por todos os membros da igreja, de modo informal, descentralizado, não
profissional, é feito por uma única pessoa: O Pastor, um profissional em regime
de tempo integral.
Como o pastor é pago para ser o
especialista em operações e gerenciamento eclesiásticos, é lógico e natural que
os leigos assumam uma atitude passiva na igreja. Ao invés de contribuir com sua
parte para edificá-la, eles ‘vão à igreja’ na condição de receptores passivos
para serem edificados. Em vez de usar seu tempo e energia para exercitar seus
dons para o bem do corpo, eles se deixam ficar sentados, assistindo ao pastor
apresentar seu show.
Imaginemos o culto de domingo à
noite. Os membros chegam na hora certa, silenciosamente se assentam nos bancos,
olham e ouvem o ministro, o qual ocupa uma posição de destaque na frente e no
centro, dominando todo o culto. Os membros levantam-se, sentam-se, e só falam
e cantam quando autorizados pelo ministro ou por um programa impresso. Na
realidade, o que acontece nas duas horas do culto de domingo à noite é um
retrato microcósmico da realidade da vida da igreja.
Se os membros da igreja pudessem
visualizar
· que a igreja não é uma
associação formal, mas uma comunidade,
· que os dons são dados a
cada um, sem necessidade de ordenação,
· que todos devem participar
ativamente do trabalho da igreja,
· que o dom de ninguém é
mais importante que o dom dos demais,
· que a participação de
todos é a garantia de uma igreja viva, plena e saudável,
· e que esta é a visão da
vida de uma igreja bíblica,
creio que eles começariam a se
perguntar “Afinal de contas, para que estamos pagando ao pastor?” - uma
pergunta que só faz sentido.
O clero profissional só é
necessário quando os membros da igreja não estão desempenhando sua parte. Em
contrapartida, quando cada membro participa ativamente e dá sua contribuição
para o bem do corpo, o ministro profissional torna-se desnecessário. Este fato
está sendo comprovado diariamente nas dezenas de milhares de igrejas nas casas
em todo o mundo.
O TERCEIRO PROBLEMA com a
profissão clerical é que ela frustra-se a si mesma. Embora seu propósito
declarado seja nutrir a maturidade espiritual da igreja, em si um alvo
valoroso, na prática ela consegue o oposto, isto é, alimenta uma dependência
permanente dos leigos ao clero. O clero é para suas congregações como pais
cujos filhos nunca crescem, como terapeutas cujos pacientes nunca são curados,
como professores cujos alunos nunca se formam. A presença de um ministro
profissional em tempo integral impede que os membros da igreja assumam a
responsabilidade pela vida dinâmica da igreja. E por que razão o fariam, pensam
eles, se esta é a obrigação do pastor? Resultado: o ‘laicato’ permanece em um
estado de dependência passiva.
Por outro lado, imaginemos uma
igreja que não tenha conseguido um substituto para o pastor, que renunciou.
Eventualmente, os membros teriam que sair de seus assentos; se reuniriam e
decidiriam quais membros se encarregariam do ensino, quais seriam os
conselheiros, quais se encarregariam das disputas, quais visitariam os doentes,
quais dirigiriam o culto, etc. Com um pouco de discernimento, chegariam à
conclusão de que a Bíblia convoca todo o corpo para, unidos, se encarregarem
dessas tarefas. Assim, eles seriam levados a descobrir os seus respectivos dons
e a função que têm a desempenhar na edificação do corpo. Com um pouco de
ousadia, essa igreja chegaria gradativamente a uma mudança definitiva. Alguns,
descontentes, sairiam à procura de uma igreja com pastores profissionais de
tempo integral. Mas os que permanecessem para participar da edificação da
igreja, atingiriam a maturidade espiritual muito mais rapidamente do que se
tivessem um pastor para fazer todo o trabalho.
O QUARTO PROBLEMA inerente à
profissão clerical é o mal que faz aos seus próprios membros. Como todos
sabemos, a tarefa do pastor é árdua, sendo muito difícil alcançar-se um ótimo
desempenho. Crentes idealistas que são, convencidos de que estão de fato
servindo a Deus nessa profissão, a ela se entregam de corpo e alma, só para
enfrentarem frustrações, estresse, e verem sua saúde se arruinar. Não é de se
admirar que seja assim, já que os clérigos têm que desempenhar as funções de
toda uma congregação! Como é possível alguém ser ao mesmo tempo um líder nato,
orador excelente, visionário, administrador competente, conselheiro abnegado,
alguém sábio em tomar decisões, solucionador imparcial de conflitos e astuto
teólogo? Qual a lógica de os membros de uma igreja esperarem que uma só pessoa
tenha que fazer todo o trabalho para eles?
A profissão de um pastor é
bastante irrealista. Tão irrealista como uma empresa que espera que um só
funcionário desempenhe todo o trabalho - seja officeboy, secretário, gerente e
presidente - enquanto os demais funcionários só comparecem ao serviço uma vez
por semana para assistir ao desempenho sobre-humano desse super-funcionário,
apenas dando uma pequena contribuição eventual quando solicitado. Assim, a
profissão clerical requer um desempenho sobre-humano de um ‘super-cristão’. Os
crentes cônscios das limitações e fraquezas do ser humano devem saber que não é
assim que a coisa funciona. E Deus o sabe; por isso delegou a tarefa de
edificar e manter a igreja à responsabilidade compartilhada de todos os
membros, em vez de a uma só pessoa centralizadora, especializada e
profissionalizada.
OS CLÉRIGOS são guardadores da
igreja. Mas a igreja não precisa de guardadores do tipo clerical que acabamos
de considerar. Deus é o guardador, e Ele conclama todos os crentes a participarem
de Sua obra. O clero profissional tem a missão de preservar, proteger e
ministrar a verdade cristã, os ensinos, a Bíblia, os sacramentos e a
autoridade. Mas a verdade cristã não é algo tão frágil, e não precisa ser protegida
por uma classe profissional. A verdade cristã também não é nenhum tipo de
material classificado, perigoso, que só peritos autorizados, portadores de
crachá, possam carregar. Nem é algum bem valioso que precise ser guardado em
cofres de alta segurança, sob a proteção de guardas armados. É a função do
Espírito Santo - não de uma hierarquia ou denominação - preservar a verdade
cristã. Aprouve ao Espírito Santo atribuir essa função a todos os Seus filhos,
para ser por eles compartilhada.
Como já vimos, o problema com o
clero não está nas pessoas investidas da profissão - pessoas estas geralmente
sinceras e responsáveis - mas no papel social da profissão em si. Eventualmente
os pastores até que tentam adaptações de seu papel, para torná-lo mais
realista e bíblico. Mas logo descobrem que não estão agradando, porque as
denominações e as próprias congregações cobram dele o desempenho padrão
tradicional.
Um problema ainda mais sério que
a profissão clerical é que a maioria dos cristãos já redefiniu o que seja uma
igreja sadia. Para a maioria dos freqüentadores de igreja, uma igreja robusta e
saudável é aquela que cresce numericamente, que tem um pastor maravilhoso, e
apresenta muitas atividades e programas. Acontece que, com base na Bíblia,
esses fatores são irrelevantes.
De acordo com a Bíblia, o que é
relevante é que cada membro coopere ativamente para o bem do corpo através de
sua participação responsável e pela prática de seus dons. À luz da Bíblia, o
que é importante é que os crentes se fortaleçam e adquiram maturidade
espiritual através da edificação mútua. Uma igreja bíblica é uma igreja do
povo, com ministério descentralizado. Por ‘igreja sem clero’ não queremos dizer
que não haja necessidade de ministro em tempo integral. Na verdade, o que a
igreja necessita é de que todos membros sejam ministros em tempo integral. A
pergunta relevante aqui é: que tipo de ministérios devem esses ministros
desempenhar. Segundo o Novo Testamento, esses ministros em tempo integral
devem estar ministrando no mundo e para o mundo, ajudando o pobre,
evangelizando, levando a paz onde há conflito e violência. De acordo com a
Bíblia, é o mundo e não a igreja que precisa de ministros em tempo integral.
O QUE PRECISAMOS hoje é de uma
igreja sem clero. Os próprios pastores precisam ser liberados da cobrança de
que sejam ultraversáteis, multitalentosos e sobre-humanos. Os leigos, por sua
vez, precisam ser despertados da cômoda ilusão de que basta freqüentar a igreja
aos domingos e entregar os dez por cento de seus vencimentos.
Uma igreja sem clero não é algo
fácil. Requer a participação ativa de todo o corpo. Mas as recompensas - a
bênção da participação, da solidariedade, da comunhão - são muito compensadoras.
E todos engajados nesse ideal estarão fazendo com que a igreja deixe de ser um
lugar aonde se vai, e passe a ser a algo que todos juntos somos: IGREJA.